"Despojos de Guerra" é um projeto de fotografia documental e, também, de recolha memorialística, que nasceu com os deficientes das Forças Armadas portuguesas. Nasceu, em especial, com deficientes profundos feridos ao longo dos 13 anos de duração da Guerra Colonial. É um trabalho que não se esgota na guerra ela mesma, mas busca histórias de resistência e superação dos jovens soldados daquele tempo, que tiveram de lutar para a sociedade os aceitar como os homens inteiros que são. Também é um trabalho que não se esgota em Portugal. Cruzando as picadas, entrando no mato e sabendo para onde olhar, é possível, em África, viajar no tempo, tantos são os testemunhos, vivos e silenciosos, do conflito. É o outro lado, menos conhecido por cá, dos que combateram pelos movimentos independentistas, em Angola e na Guiné-Bissau, mas também dos africanos que integraram o Exército português. As marcas indeléveis nos corpos de homens e mulheres que, ainda crianças, pegaram em armas pela FNLA, na região angolana dos Dembos, igualmente nos que combateram pelo PAIGC na Guiné Bissau. Esses são os que falam, com a voz ou com o olhar. O silêncio é dos espaços. Dos cemitérios onde foram sepultados militares portugueses, hoje ao abandono, dos sítios onde a metralha zurziu vidas de todas as cores, das prisões do salazarismo, das memórias caladas. Um silêncio de morte. De muitos milhares de mortes. Fazendo uso de técnicas que vão do pioneirismo da fotografia ao suporte digital, é um labor que passará ainda por Moçambique, antes de desaguar no que serão os suportes definitivos do trabalho, um livro e uma exposição.
Abel Fortuna, 71 anos. Mal desembarcou na Guiné-Bissau, sentiu-se um intruso em terra alheia, a defender o regime fascista a que cada vez mais se opunha. Nessa terra alheia, uma mina deixou-o sem mãos e praticamente cego, em 1971. Destacado desde o início na vida associativa, preside à delegação do Porto da ADFA.
António Marques, 78 anos. De Pindelo, perto de Viseu, foi parar à Guiné-Bissau em 1964, como soldado de cavalaria. As emboscadas começaram mal lá chegou, até que, um ano depois, uma explosão lhe ditou o fim da guerra, mas não do calvário. Ainda via de um olho, mas o mau acompanhamento médico na estrutura militar acabou por o mergulhar na cegueira total.
Manuel Sousa, 76 anos. Foi levado para Moçambique, deixando para trás a mulher, grávida da filha de ambos. Em 1967, uma emboscada atirou-o para uma cadeira de rodas. Ainda tem alojada na coluna a bala que o paralisou.
Albino Loureiro, 72 anos. Antes de ir para a tropa, em Felgueiras, por influência de um padre progressista, cantava música de intervenção contra o regime. Estava a dias de deixar Moçambique e voltar a casa quando uma mina lhe levou a perna direita e o cegou de um olho. Tinha apenas a quarta classe, mas lutou para estudar e realizou-se como professor primário.
Ilídio Lázaro, 71 anos. Esteve quase a conseguir escapar para França, mas foi detido e fizeram dele comando. Em Moçambique, foi dado como morto após um acidente de viação, em 1973, mas saiu vivo da morgue, fazendo jus ao apelido familiar. Sobreviveu a todos os combates, mas passou anos a lutar contra os “fantasmas” do stress pós-traumático.
ilvério Rodrigues, 73 anos. Perdeu os dois olhos e os dois braços em Bolama, na Guiné, ao preparar uma instrução. Não chegou a combater nem era belicista, mas acabou por fazer carreira como oficial do Exército, especialmente em funções sociais e de apoio a reclusos e a outros deficientes. É um caso notável de resiliência e de autonomia, apesar das limitações.
João Vasconcelos, 76 anos. Já era professor primário quando o roubaram à vida para ir para a guerra. Em Angola, no ano de 1968, coube-lhe desarmadilhar oito granadas em cadeia. Só uma rebentou, levando-lhe o braço direito e a audição do mesmo lado, enchendo-lhe o corpo de estilhaços. No seio da ADFA, chegou a dirigir o “Elo”, jornal oficial da associação.
Francisco Janeiro, 73 anos. Em 1970, em Cabo Delgado (Moçambique), pisou uma mina. Perdeu a perna e o olho direitos, entre outras mazelas. Revoltado desde logo com a forma como a instituição militar o tratou, fez parte de acções de protesto dos deficientes militares, ainda antes do 25 de Abril, e tem sempre sido muito participativo na ADFA, a cuja delegação de Lisboa preside.
Fernando Ribeiro, 70 anos. Tentou, por duas vezes, dar o salto para França para escapar a uma guerra em que não se revia, mas acabou em Moçambique, onde perdeu os membros inferiores, em 1970. Acabou a estrear um lar só de militares, em Lisboa, e é hoje dos poucos que lá restam. Notabilizou-se no desporto adaptado.
José Silva, 72 anos. Mal chegou à Guiné, percebeu que a guerra era injusta e sem sentido, ao contactar com a dura realidade das populações locais. E muito injusta seria também para ele próprio, que, cego e sem mãos na sequência de uma explosão, em 1973, não pôde ter a vida com que sonhara, conduzindo camiões pela Europa fora.